26 fevereiro, 2010

os contornos da vida

Hoje acordamos de sorriso comprido, depois estranhamente os olhos se curvam tristes. No dia seguinte revoltados ou sensíveis, delicadamente emotivos e desesperançados. Apaixonados, ditadores, ridículos. Com vontade de inovar, com vontade de desaparecer, sem vontade.

Há um lugar onde me sinto quase sempre bem: no meu sofá, a alinhavar panos antigos e a pontear caras de bichos que, quando já feitos, embalo no colo. Sempre que um se tem inteiro, tomo-o nos braços. Amanhã pode ir de viagem para um novo dono e não quero que vá sem o meu abraço.

Poderia ser sempre assim, na vida, não importam os contornos e enchimentos. Deveria sempre haver tempo para o embalo.

14 fevereiro, 2010

a simpleza do amor

Num dia em que se fala de amor, seria tão doce tê-lo como gratuito e inteiro. Um estado quase insustentável de partilha e lealdade, numa harmonia universal com os bichos, as gentes e as coisas. Se soubesse, rascunharia num guardanapo a fórmula do amor. Ou combinaria as ervas possíveis para um chá que nos inebriasse o coração. Fica a ideia.

Mais gatos e raposas a serem alinhavos. Em breve, saberemos o nome.

Retrato: ensaio dum chá universal do amor
(usado para tingir o algodão branco dos meus bichos costurados pelos dedos, chá preto e baunilha).

11 fevereiro, 2010

o defeito horizontal do pensamento

O mundo visto do chão é mais doce. Os olhos postos no acima da vida, na grandeza dum voo simples da borboleta mais vulgar, nas poeiras cintilantes que vão caindo sobre nós. Quando me levanto, tropeço no meu próprio pensamento. Tem um defeito, é horizontal. Bichos e coisas numa única linha, homens e ideias num mesmo lugar. A verticalidade na linguagem incomoda, ainda mais no coração. Hierarquias, superioridades, títulos, reverências. Somos gente, bicho e coisa, num universo que se vai fazendo de memórias e imaginação. O coração do pássaro livre tem outro batimento que não o nosso, mas será por isso menos valioso?

Retrato: um bicho asado com vontade de ir tão longe.